Carta de Salvador sobre o Futuro da Internet no Brasil

A Carta de Salvador, redigida coletivamente por ativistas e integrantes de organizações da sociedade civil durante o V Fórum da Internet no Brasil pede para imediata regulamentação do Marco Civil da Internet com Neutralidade da Rede e chama a atenção para poderosas ameaças à sua integridade, e manifestam-se contra o retorno legislativo do AI5Digital. O Movimento Mega participou ativamente da articulação e redação da carta sendo um dos signatários, leia a íntegra abaixo:







CARTA DE SALVADOR SOBRE O FUTURO DA INTERNET NO BRASIL


Nós, cidadãs e cidadãos, integrantes de entidades da sociedade civil e ativistas da rede, presentes no V Fórum da Internet, em Salvador (BA), consideramos que deve ser agilizado o processo de regulamentação do Marco Civil da Internet, lei em vigor há mais de um ano, respeitando o processo democrático que a caracterizou.

O lema desse ano do Fórum da Internet no Brasil é “Evolução da Governança da Internet: Empoderando o Desenvolvimento Sustentável”. Tratando de acesso à internet, estamos falando de direito fundamental, como já reconheceu a Comissão de Direitos Humanos da ONU há quase 5 anos e o NETmundial, ocorrido em abril de 2014 no Brasil. Ressaltamos que esses processos são cruciais para garantir o caráter global e aberto da Internet como motor para acelerar o desenvolvimento social e econômico.

Entendemos ser necessário impedir que novas iniciativas de regular o uso da rede deturpem os princípios e garantias já estabelecidos, os quais foram amplamente discutidos com toda a sociedade. No mesmo sentido, é imperativo que a minuta do decreto de regulamentação seja aberta ao público em plataforma online e participativa, da mesma forma que o Marco Civil foi debatido.

Atualmente um poderoso oligopólio transnacional de telecomunicações domina quase integralmente o mercado de banda larga brasileiro e enxerga a Internet como um lucrativo ambiente de negócios. Entretanto, para além da livre iniciativa, da livre concorrência e mesmo da defesa do consumidor, a Lei 12.965/2014, Marco Civil da Internet, estabelece como fundamentos para a disciplina do uso da internet no Brasil o exercício da cidadania em meios digitais, de forma plural e diversificada, com abertura e colaboração, orientada ao cumprimento da finalidade social da rede. Portanto, em vez de se pautar exclusiva ou mesmo prioritariamente por interesses privados do mercado, devemos avançar na garantia de que a Internet seja regulada como um recurso global, com base no interesse público e de maneira participativa.

A propósito, mesmo antes da regulamentação, mostra-se urgente adotar medidas imediatas contra as práticas comerciais que desrespeitam as disposições do Marco Civil. Têm sido cometidas diversas violações ao direito à neutralidade da rede por meio de modelos de negócio que utilizam do zero rating associado a planos franqueados com discriminação e bloqueio de pacotes ao final da franquia, em descumprimento do dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Ainda, são anunciadas outras possibilidades de discriminação de tráfego como, notadamente, a iniciativa internet.org do Facebook, em relação à qual o Governo Federal noticiou uma possível parceria para inclusão digital, sem, no entanto, revelar maiores detalhes.

O principio de neutralidade da rede desempenha o papel de garantir a proteção dos fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil. A neutralidade da rede é explicitamente protegida pelo Marco Civil e, em conformidade a tal proteção, a liberdade dos usuários da Internet não pode ser restrita, favorecendo ou desfavorecendo a transmissão de tráfego na Internet. O tratamento isonômico imposto pelo Marco Civil deve ser implementado técnica e economicamente. Pedimos que o governo promova o acesso não discriminatório à Internet na sua integridade e se posicione claramente contra as iniciativas que violam a neutralidade da rede e que podem determinar a fragmentação da internet.

Também a recente aprovação pelo Senado do PLS nº 494/2008 evidencia um desrespeito ao Marco Civil. Sob o pretexto de tornar mais rigoroso o combate à pedofilia, o projeto de lei retoma graves problemas amplamente debatidos e abolidos na tramitação do PL nº 84/99 (AI-5 digital). Destacam-se a obrigatoriedade generalizada da guarda de dados de conexão e acesso por três anos, no que estabelece a presunção de culpa para qualquer internauta e fomenta o mercado de dados pessoais, que ainda não conta com a devida proteção legal no País; o dever de denúncia dos próprios clientes, criando a figura do provedor dedo duro; e a previsão de acesso a dados pessoais pela autoridade policial sem a necessidade de ordem judicial, justamente a lógica legislativa de padronizar a vigilância em massa, que não só motivou a criação do Marco Civil da Internet em reação contrária, como impulsionou sua aprovação, a partir das denúncias de Edward Snowden.

O Marco Civil coloca como princípios a proteção da privacidade e de dados pessoais, bem como a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades e o estímulo a boas práticas. Partindo desse parâmetro, seu texto determina que exclusivamente os provedores de conexão que sejam administradores de sistemas autônomos devem guardar os registros de conexão dos usuários e pelo prazo de um ano. Além disto, prevê que a disponibilização dos registros deve ser sempre precedida de autorização judicial. Não podemos permitir que o reavivemento do AI-5 Digital, pelo PLS nº 494/2008, desconsidere completamente e simplesmente anule o resultado de uma longa discussão coletiva.

É com base nesta realidade que nos posicionamos diante das disputas hoje em curso, estando entre as mais urgentes a interpretação quanto à abrangência da garantia da neutralidade da rede, expresso nos arts. 3º e 9º, do Marco Civil da Internet, e a regulamentação das hipóteses em que agentes do poder econômico estão autorizados a quebrar a neutralidade, que devem se limitar a fruição de serviços de emergência, garantindo a integridade e a segurança das redes.

Assinam essa carta aqueles que defendem a internet livre como uma rede preciosa à criação colaborativa, à liberdade de expressão, à mobilização social e ao fortalecimento de diversos direitos fundamentais, como a comunicação, a cultura e o acesso à informação, com atenção à pluralidade e à diversidade para empoderar mulheres, jovens, e o midialivrismo étnico-racial nacional e internacional. Pela construção de uma sociedade democrática para todas e todos!



Por Henderson Matsuura Sanches 

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